Os Bichos e CBA

do blog CulturalMente Santista

O ditado diz que não se deve discutir política e religião. Mas “Os Bichos”, do cubatense Manoel Herzog, aborda esses temas de forma inteligente, irônica, e crítica, que podem e merecem gerar reflexões. O livro, editado pela Realejo, será lançado em 14 de março, sábado, 18h30, na livraria, durante a happy hour musical com Edinho Godoy e Theo Cancello. É a chance do leitor adentrar a um universo envolvente, que ainda mistura tarô, natureza, a monarquia francesa, num caldeirão que mira a situação política brasileira.

Na obra alegórica, Herzog traça um paralelo entre o urubu, ave que nasce branca e vai escurecendo conforme se alimenta de sujeiras, e o ser humano, que chega à vida puro, mas se contamina com os males da sociedade. A trama acompanha um jovem idealista, que se apaixona pela filha de um político corrupto e acaba fazendo concessões para se aproximar da amada. “Tinha iniciado uma série de contos escritos em primeira pessoa com as vozes desses animais, como um cachorro que viveu comigo durante 16 anos. Tem 10 animais que permeiam a narrativa do livro. E a história se desenvolve por um narrador onisciente, em terceira pessoa, e vai nessas duas linhas – seguem em paralelo e se encontram no final”, explica o autor.

“As alegorias são uma forma direta de crítica dos costumes e serviram de base para o humanismo avançar um milímetro na direção da vida do espírito, evocada por grandes como Montaigne e Leopardi. Neste ‘Os Bichos’, de Manoel Herzog, temos um tipo mais sofisticado de alegoria, onde a ironia sutil é capaz de forjar um pensamento denso, que se alimenta de uma rica simbologia”, define o conterrâneo e celebrado escritor Marcelo Ariel, na contracapa do livro.

Os moradores da Baixada Santista encontram um atrativo: várias personalidades verídicas da região são citadas ao longo da trama, apesar da narrativa acontecer em uma cidade fictícia.

Para conceber o projeto, Herzog realizou um intenso trabalho de pesquisa. Inclusive, foi à França, onde buscou informações detalhadas das catedrais de Notre-Dame e Saint-Denis, e do Palácio de Versalles – busca essa que surgiu em uma exposição sobre o lar da monarquia francesa, em São Paulo, anos atrás. “Os personagens do livro são monarquistas. Se compararmos, aquela realeza e os atuais políticos brasileiros estão bem próximos. Eles não se preocupam com a sociedade”, diz.

Sobre a edição na Realejo, recorda: “Como era frequentador, comentei com o José Luiz Tahan, proprietário da editora, e ele gostou da ideia, pediu os originais e topou publicar”.
“’Os Bichos” marca a nossa busca por autores da literatura brasileira em prosa ficcional. E começamos com o pé direito”, afirma Tahan.

por Ademir Demarchi

Que o leitor acostumado com ficções urbanas, misérias, crimes e histórias de amor, que são marca da literatura contemporânea brasileira, se prepare: saiba de antemão que, diversamente, este romance se passa dentro de uma indústria química multinacional, em meio a fornos, máquinas e produtos químicos e num tom irônico de narrativa, sem cair no cacoete da idealização romântica de esquerda dos operários.

Manoel Herzog faz pela literatura o que Carlão Reichenbach fazia no cinema: Carlão, inovando nos temas do cinema nacional, tirando o foco das greves e operários que urdiram Lula, mostrava a vida das mulheres operárias do ABC, numa atitude voyer que as punha lindas nas telas, trabalhando nas fábricas, se trocando de seus uniformes e passando maquiagem, respirando em carne e osso e vivendo seus dramas na periferia como se estivessem no centro do mundo, ainda que fosse na periferia do capitalismo.

Já, neste romance, ainda que se fale bastante de mulheres, mostradas como tontas românticas, um tanto como objetos de uso e passatempo do narrador, um operário bipolar com veleidades de se tornar escritor, o interesse maior está nos operários, tema que a literatura brasileira contemporânea ignora.  É o seu modo de pensar, falar e agir, como se submetem à escravidão das horas de trabalho, que chama a atenção.

Diferentemente do cinema, porém, aqui, conforme já observado, o tom da narrativa é irônico, possibilitando várias risadas, vindas tanto do modo esdrúxulo do narrador quanto do modo de falar e agir dos personagens que proliferam e trabalham irresponsavelmente na tal fábrica e em nada mais lembram aqueles compromissados com a revolução urdidos em décadas anteriores. O narrador dá provas explícitas de que fez o serviço militar de leitura machadiana e de outros autores que lhe são caros, como Bukowski e Reinaldo Moraes, este citado ou pastichado em vários aspectos do seu romance Pornopopeia.

Cubatão, também nas rebarbas do capitalismo, aparece aqui sem suas habituais misérias sociais, ainda que presentes no subtexto. Ela foi uma cidade que ficou conhecida por fabricar crianças sem cérebro no período pós-ditadura, devido à poluição química em nome do desenvolvimentismo a qualquer preço que apregoava um Brasil Grande, formação de bolo e poupanças para um futuro promissor que parecia estar no horizonte como o paraíso.

Esse final deslumbrante da utopia militarista parecia se fundir com aquele da esquerda, embora ambos fossem por distintos e conhecidos caminhos que se chocaram e deram em nada, como era de se esperar. Daí que continuamos aqui, onde eles se encontram representados nessa fábrica do romance, com o tal horizonte colorido prometido, agora embaçado e coisificado no marketing de que o país é a sétima economia do mundo, já disputando o lugar da Inglaterra, mas sentado em cima da herança nefasta da miséria. Incrustada, pois, neste presente industrial pós-utópico com seus altos fornos está a indústria química pesada que é a Companhia Brasileira de Alquimia, inaugurada na data sutil de 31/3/1964, assim como são sutis outros dados em sua relação com a realidade.

A CBA é focada na produção de… pedra filosofal, um insumo básico exportado para a produção de… ouro, e cujos insumos básicos são mercúrio e amianto, banidos dos países desenvolvidos por serem altamente tóxicos, mas usados aqui por muito tempo, resultando em cânceres pulmonares, anencefalias, desertificação do meio ambiente, poluição da água com mercúrio e metais pesados, descarte de produtos químicos e venenos em terrenos baldios depois ocupados por favelas…

No coração da fábrica, como tantos outros homens perdidos e alheios aos processos industriais agora supostamente automatizados, está o Poeta, esse personagem-narrador descrente de tudo, cínico com sua própria condição de proletário (“que ganha sete pau”) “numa fábrica onde ninguém é companheiro de ninguém e um quer mais é fuder o outro”, que se aproveita do ócio no trabalho para bate-papos na internet, sacanear os colegas, ler livros clássicos, ouvir música brega, ou escrever esse romance que é irônico também com a própria linguagem – “litegatuga compagada”, enquanto toma um e outro “preto recém passado no saco”, vulgo cafezinho.

Como um Faustinho medíocre que flexiona tanto saberes literários de notas de rodapé quanto ignorâncias vergonhosas (como pedir, por estar mais barato no cardápio, vinho de sobremesa em lugar de vinho mesmo), o Poeta, como um Pateta, lida com enxofre na fábrica como se estivesse no Inferno imaginário de um dos livros que lê, convivendo com gente de nomes sugestivos como Chumbinho, Cabeça, Longue Djon, Cavalo-do-Índio, Cara-de-Cavalo, Boceta-Apertada, Bracinho-de-Vitrola. A primeira frase do romance, em se tratando de um proto-químico que é esse Poeta, já começa irônica: “Acordei ácido” – e se abre para a degeneração da linguagem, dos costumes e da própria ética do trabalho, derruídos por esse processo industrial coisificador tal como está organizada a sociedade que, de bom, parece produzir apenas romances.

Fontes: CulturalMente Santista e CineZen Cultural <<Acessados em 09/06/2014>>

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